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O filho de mil homens: solidão e redenção


A solidão de um homem em busca de um filho é o ponto de partida da trama contada por Valter Hugo Mãe nas páginas do livro “O filho de mil homens”. O pescador Crisóstomo, habitante do vilarejo no qual a história se passa, chega aos quarenta anos e sente a vida incompleta, sente que tudo “lhe faltava pela metade”.

O pescador admite a tristeza por não ter um filho e decide procurar por ele. Na ideia do Crisóstomo, o filho estaria em algum lugar, à espera dele, como uma resposta para a solidão que sentia. Seria a solução, uma forma de dar sentido à vida e, com isso, sentir-se completo.

A partir da busca do pescador, Hugo Mãe passa a narrar as histórias de outros personagens, também habitantes do vilarejo e que, uma hora ou outra, vão cruzar o caminho do Crisóstomo. Sem o compromisso de ligar imediatamente os pontos da trama, o escritor apresenta Camilo, Alfredo, Carminda, Isaura, Maria, Matilde, Rosinha, Antonino, Emília, Gemúndio e outros personagens que agigantam a obra e fazem dela muito mais do que um encontro entre pai e filho.

Um dos elementos fortes nas histórias contadas no livro é a solidão, vista pelos olhos da beleza, apesar do sofrimento e angústia que, às vezes, ela pode proporcionar. O escritor enaltece os momentos de solidão e o quanto eles contribuem para o processo de crescimento e amadurecimento dos seres humanos.

Num trecho da obra, o personagem Camilo põe-se a pensar “que tantas coisas se aprendiam quando se ficava sozinho”. E, diante disso, ele constata o quão importante é “que muita coisa fosse decidida nessa clausura de solidão, para que a natureza de cada um se pronunciasse livremente, sem estigmas”.

Camilo é um jovem de quatorze anos que não chegou a conhecer os pais e ficou sozinho após a morte do avô. A vida dele se transforma quando encontra o pescador Crisóstomo, com quem constrói uma relação de pai e filho.

Nascido em Angola e radicado em Portugal, Valter Hugo Mãe tem a escrita leve, poética, envolvente. É daqueles autores que nos fazem pensar: Eu adoraria ter escrito isso! Como é o caso deste recorte que traz um diálogo entre pai e filho: “O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és”.

A partir de histórias que se encontram, o escritor desenha uma família inusitada, construída pelo tempo e pela vontade dos seus integrantes. Mais do que qualquer coisa, eles desejam estar juntos e se fortalecem na presença uns dos outros, de modo a aplacar a solidão de toda uma vida. Porque, como o próprio Crisóstomo conclui, a vida o ensinara que “família também se inventava”.

Os laços que os personagens constroem são o caminho encontrado por eles para a própria libertação. É o caso do Antonino, o “maricas”. Desde muito cedo ele percebe que sente atração por outros homens. Naquele contexto (do vilarejo), isso é visto como uma verdadeira “aberração” e Antonino se fecha, mergulhado na busca de ser algo que não é. Por meio do afeto de outros personagens como Isaura, Crisóstomo e Matilde, Antonino se expande, cresce e ganha ares de protagonista na história.

Além de mostrar como os personagens superam o preconceito em suas vivências com o “maricas”, Hugo Mãe aponta de que maneira o próprio Antonino consegue se aceitar, se fortalecer e superar a insegurança que a sexualidade provocara em sua existência.

A ideia do título (O filho de mil homens) remete ao processo de construção humana que as relações provocam. Um filho de mil homens certamente terá muitos irmãos, estará sujeito a diversas relações, construirá laços com pessoas dos mais variados tipos, será tocado por muitas ideias e sonhos e também tocará tanta gente que nem ousa imaginar. Me lembrou aquele ditado que diz ser preciso uma aldeia para educar uma criança.

A partir dessa ideia, o Crisóstomo, tão apegado à solidão, compreende que, no fundo, nunca se está sozinho, pois “somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa”. É dessa forma que a solidão do pescador se converte em redenção.


* foto Claudio Belli



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