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Uma rua chamada escrita


Em 2017, estive em Buenos Aires pela primeira vez, para passar doze dias na cidade. Os meses que antecederam a viagem foram marcados por pesquisas e leituras a respeito do lugar que, em breve, eu visitaria. Para mim, a viagem começa no planejamento. Cada informação nova faz com que a vontade de estar no local e vivenciar experiências cresça mais e mais.


Com o passar dos dias, o frio na barriga também aumenta e já não se vê a hora de passear por ruas que, até então, eram desconhecidas.

Como o roteiro também incluía uma passagem rápida pelo Uruguai, tudo precisava ser muito bem calculado para que houvesse tempo hábil para cumprir a programação. E assim aconteceu. Mas também aconteceram coisas que não estavam no planejamento e, como era de se esperar, deixaram a viagem mais especial. Uma delas foi a visita ao bairro Barracas, em Buenos Aires, numa manhã nublada e gélida.


Eram quase dez da manhã. Ao virar uma esquina, as cores da Calle Lanín* deixaram nossos olhos em festa. Os mosaicos que enfeitavam as fachadas das casas e prédios da região enchiam os olhos dos que passavam por ali. Difícil escolher a fachada mais bonita e, mesmo assim, eu tentei. Logo relacionei as artes daquela rua com outros painéis espalhados por estações de metrô da cidade. Todos eles ganharam vida pelas mãos de Marino Santa Maria, artista plástico argentino. Paredes, calçadas, canteiros… a arte de Marino estava em tudo por ali.


E ele próprio também estava. Numa casa ao fim da rua, na qual funciona seu ateliê, ele nos recebeu. Enquanto caminhávamos devagar pela casa para apreciar com calma toda a criatividade reunida entre aquelas paredes, Marino ensinava a arte do mosaico durante uma oficina. Jovens e adultos prestavam atenção ao que ele dizia e mostrava. Eles tentavam absorver ao máximo um pouco da experiência de quem se dedica aos mosaicos faz tanto tempo. Com entusiasmo, o artista falava da sua arte e das técnicas, animado pelo exercício sagrado do compartilhar.


Impossível conversar com Marino e não se encantar pelo jeito alegre de quem enche a boca para falar do que ama. Para registrar o amor por Barracas, pela Calle Lanín e pelos mosaicos, ele decidiu encher a rua do seu coração com as mais bonitas expressões de sua arte e o resultado proporcionou um verdadeiro ateliê a céu aberto.


Foi de Marino Santa Maria que me lembrei durante a leitura da coletânea de ensaios “O Zen e arte da escrita”, de Ray Bradbury. O livro reúne textos que o escritor publicou entre os anos de 1961 e 1982, a respeito de seu processo criativo e da construção de obras como “As crônicas marcianas” e “Fahrenheit 451”, adaptada para o cinema por François Truffaut. Em um dos textos, Bradbury escreve que, se perguntassem a ele sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, ele aconselharia a olhar para aquilo que provoca entusiasmo.


“Se você está escrevendo sem entusiasmo, sem prazer, sem amor, sem alegria, você é apenas meio autor”, enfatiza o escritor que ficou conhecido por suas obras de ficção científica. Eu, que me considero uma aprendiz nos caminhos da escrita, dediquei alguns momentos para refletir sobre a frase de Bradbury. E foi então que a imagem de Marino Santa Maria passou a povoar os meus pensamentos. Marino se tornou para mim uma representação do entusiasmo e pude imaginá-lo a escrever um texto sobre mosaicos. Mas ele nem precisa escrever sobre isso: basta dar vida a sua arte e deixar que ela fale por si.


No caso de quem deseja mergulhar ainda mais no universo da escrita e se aperfeiçoar nisso, como fazer para deixar de ser um meio autor? Como se tornar um autor completo, por inteiro? Além de beber no entusiasmo e nos assuntos que nos inquietam, existe um passo anterior que é acreditar. Acreditar que é possível construir no papel as histórias que vivem dentro de cada um de nós, feito os mosaicos aos quais o Marino se dedica, pecinha por pecinha.


Um passo que considero importante é ouvir e aprender com outros amantes da escrita. Os alunos de mosaico do Marino nem piscavam enquanto ele falava. Permaneciam quietos e sedentos, com a atenção voltada ao artista. Não queriam perder um único detalhe de cada peça colocada. Da mesma forma, enquanto aprendiz na arte de escrever, posso dar passos importantes ao ouvir quem também escreve, ao conhecer mais os processos de criação daqueles que gosto e admiro.


Foi por isso que me tornei uma caçadora de oficinas de escrita, principalmente por conta dos exercícios que costumam ser propostos nelas. Geralmente provocam muito a minha criatividade e isso é fundamental para quem gosta de escrever. Além do mais, permitem uma proximidade com quem também se dedica ao ofício. Num curso recente, com a Mayara Blasi, ela propôs uma atividade que tem rendido bons frutos do lado de cá. O ponto de partida era simplesmente fazer uma lista a partir da frase “Eu posso escrever sobre…”.


Sem muita pretensão, coloquei no papel: “Eu posso escrever sobre a minha infância”. Rapidamente outras coisas vieram à tona, passagens e períodos de uma infância que me alegraria compartilhar. Faz um mês que meu foco tem sido a criação de histórias sobre coisas que se passaram em um determinado momento da minha infância, conectando essa realidade a nuances de fantasia e ficção. A partir desse exercício, imagens e recordações subiram à superfície para mostrar quão vivas e presentes elas ainda estão.


Nesse processo, a escrita tem sido uma porta para lugares inimagináveis dentro de mim mesma, uma ferramenta para reencontros e reconciliações com a criança que um dia fui e com seres e pessoas que permeiam as histórias que me atrevo a contar. O Bradbury dizia que “existe apenas um tipo de história no mundo, a sua história”. Somente a mim caberá a função de contar as histórias únicas e tão intensas que carrego aqui dentro. Ao fazer isso percebo que nada me dá mais entusiasmo do que contar a minha própria história.


Feito as peças de azulejo que o Marino usa para criar painéis tão incríveis, assim também sigo, a mover e colar as peças da minha existência. Não faço grandes planos. Apenas me alimento do que me instiga e provoca, fiel discípula da escola do compartilhar. Por onde me levarão os caminhos dessa rua chamada escrita, só o tempo saberá. Enquanto dou passos ainda pequenos e em desajuste, faço da escrita um instrumento para contar lembranças “quase mortas”, assim como a Calle Lanín antes de ganhar as cores e olhares do seu amado artista.

*Entre o povo Mapuche, que vive no Chile e na Argentina, Lanín quer dizer “quase morta”.



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